A batota (jogo de cartas), na Foz do
Douro, há cerca de 155 anos atrás
Sob o título “Uma das jogatinas”
escreveu, em novembro de 1882, Ramalho Ortigão, que tinha
participado, pela derradeira vez, cerca de vinte anos antes, numa
batota em São João da Foz.
A espelunca, como a intitulou,
funcionava na Assembleia do Mallen, na Praia dos Ingleses, com um
terraço sobre o mar e com entrada pela rua da Senhora da Luz.
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Desenho, assinado por JPedrozo, está publicado no livro As Praias de Portugal, da autoria de Ramalho Ortigão, com a indicação de que se trata da Praia dos Ingleses. |
Referiu ainda que o jogo estava armado sobre uma vasta mesa forrada a
pano verde, iluminada por um candeeiro de tecto no meio do grande
salão de baile.
Em torno da mesa encontravam-se homens da melhor
sociedade do Porto e da província do Douro e do Minho, a banhos na
Foz, que formavam, entre os sentados e os de pé por detrás destes,
três ou quatro círculos concêntricos.
A regra do jogo, descreveu-a
assim: “Tiravam-se do baralho duas cartas que um dos homens, ao
serviço da casa, colocava na mesa ao lado uma da outra. Lá estava,
por sinal, o três de espadas a um lado e o rei de copas ao outro. A
gente escolhia, para apostar por ela, a carta que queria e
colocava-lhe ao lado o preço da aposta. Depois do que, ganhava o rei
ou ganhava o terno, segundo era um rei ou um terno de outro naipe a
primeira dessas duas cartas que em seguida saía do baralho”.
O
nosso escritor foi a jogo com mil reis (100$000) e perdeu-os. E
acabou por jogar, até de manhã, todo o dinheiro que possuía
naquela noite. E não seria pouco, pois, segundo relatou, tratava-se
da importância que tinha recebido nesse dia, pela colaboração,
durante meio ano, num jornal americano.
Porem afirmou que o jogo era
uma asneira. E discordava do governo ao mandar castigar as asneiras
em que cada um incorre. Evita-las ainda achava que se podia
permitir.
E escreveu: “Se tivessem de ser presos todos aqueles que
fazem asneiras o próprio governo seria uma coisa impossível porque
há muito não haveria ministro nenhum que andasse solto.”
Ramalho Ortigão viveu em Carreiros.
Há quem diga que o escritor Ramalho
Ortigão terá vivido na Foz do Douro. Tendo em conta um dos seus
escritos, por volta de 1883, publicado no livro “As Farpas”,
volume I, sob o título “AS PRAIAS, S. João da Foz – Como a
gente se diverte – O homem jocoso – Banhos e banhistas”, viveu
em Carreiros numa casa em frente ao paredão do quebra-mar, um
pequeno porto de abrigo das lanchas de pesca em dias de mau tempo.
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Molhe de Carreiros. Imagem certamente posterior à época a que se refere Ramalho Ortigão (1833) |
Esse local faz parte da freguesia de Nevogilde que naquela altura
estava ainda integrada no concelho de Bouças. Só mais tarde, em
1895, passou a pertencer ao concelho do Porto. Certamente que na
altura, tal como ainda hoje, aquele local é muitas vezes designado
como sendo Foz do Douro. Claro que poderá ter residido em outro
local situado em S. João da Foz, mas nunca encontrei qualquer
referência.
Alguns anos mais tarde um sobrinho do
escritor, de nome Francisco Ramalho Ortigão, conhecido como R.O. F.,
pseudónimo que usava na sua mocidade para assinar, como jornalista,
os seus artigos, viveu na rua do Alto de Vila, numa bela residência,
segundo descreveu o Brigadeiro Nunes da Ponte no seu livro
“Recordando o Velho Porto” (editado em 1963), casa onde explorou
uma fábrica de tapetes que exibia nos seus jardins, para venda.
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Caricatura de Francisco Ramalho Ortigão, da publicação Recordando o Velho Porto, da autoria do Brigadeiro Nunes da Ponte |
Não
se sabe onde se situava a casa mas presume-se que ficava na esquina
com a rua de D. Miguel da Silva.
Este sobrinho do escritor, como bom
cavaleiro que pelos vistos era, foi um dos organizadores do Centro
Hípico do Porto.
Mas foi também um dos membros assíduos do Cube
Rigollot, que reunia à porta da Farmácia Amorim, que outrora existiu
na esplanada do Castelo, em frente ao Forte de São João Baptista,
vulgo Castelo da Foz.
Francisco Ramalho Ortigão era contemporâneo e
amigo do Brigadeiro Nunes da Ponte.
Voltando a Ramalho Ortigão, escritor,
é interessante ler algumas das suas descrições a partir do local
onde vivia.
Uma delas é a referência que fez sobre uma de rocha
negra, áspera, duramente recortada como uma grande flor granítica,
que sobressaia da superfície plana da cantaria do paredão do
quebra-mar. Escreveu Ramalho Ortigão que reconhecia essa rocha com a
mesma ternura saudosa como um velho móvel de família pelo facto de
ali se ter sentado em criança, com o seu chapéu de palha e o seu
bibe cheirando ao algodão novo azul e branco da fábrica do Bolhão.
Referindo-se também à bela estrada da
Foz a Leça escreveu que por ali rodavam listradas com longas faixas
de cores vivas, as carruagens americanas e no mastro da torre do
farol na Senhora da Luz (referia-se ao Monte da Senhora da Luz no
cimo da rua do Farol) flutuavam os galhardetes triangulares com os
quais se emitiam sinais da terra para os navios.
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Nesta imagem da avenida de Carreiros podemos ver, no meio das casas, mais elevado, o farol da Senhora da Luz e o mastro. |
E que à beira da
estrada as novas edificações se destacavam do fundo verde-negro dos
pinhais que cobriam as colinas sobranceiras.
Depois de algumas
considerações sobre a forma como eram tratados os muitos banhistas
que ocorriam às praias para os banhos entre a barra e o molhe de
Carreiros, na sua opinião com muitas falhas, descreveu como as
pessoas utilizavam o seu tempo após os banhos.
Assim, durante o dia
(depois das dez ou onze horas da manhã, quando findavam os banhos)
as senhoras deixavam enxugar o cabelo e tocavam nos pianos a Marcha
Turca de Mozart.
Ao fim da tarde passeavam-se na totalidade, aos
encontrões, no Passeio Alegre.
Aos sábados à tarde saía menos
gente à rua do que em outros dias.
Aos domingos saía toda a gente.
Às segundas feiras não saía ninguém.
E interrogava-se. Qual a
razão deste fenómeno? Concluindo que ninguém o sabia.
A Foz, escreveu,
sobredoura os seus encantos com a posse deste mistério insondável.
Agostinho Barbosa Pereira - junho de 2017.